São banais e
corriqueiros os fenómenos sociais que, em Moçambique, a sociologia prestaria
mais a sua atenção. Na verdade, os “quebra-cabeças” que há nos fenómenos socais
manifestados na realidade moçambicana, e os quais os sociólogos dedicar-se-iriam
a vasculhar a sua inteligibilidade, estão dissimulados nas acções quotidianas
das pessoas. Estão dissimulados no que as pessoas, a cada instante da sua
vivência, e numa determinada situação, dizem, pensam, fazem ou sentem: o nosso
abraço, os nossos sorrisos, os apertos de mãos, a nossa fala, o nosso ofício, a
nossa diversão, a nossa percepção sobre a doença e a sua respectiva cura, as
nossas crenças, os nossos mitos, as nossas dores, a nossa linguagem, os nossos
“mal-entendidos”, as nossas intervenções públicas, os nossos recolhimentos, os
nossos medos, receios ou as nossas coragens, em tudo isso, e em muito mais,
encontram-se dissimulados os “quebra-cabeças sociológicos”. Nesse sentido, e
numa sociedade animada e viva como a nossa, o que não faltaria ao sociólogo,
como muito bem nos disse o sociólogo Elísio Macamo, seria trabalho. Trabalho
que, por falta de energias para ele, aumenta a cada instante, a cada dia, numa
dinâmica tal como se caracteriza qualquer realidade social. Entretanto, não
obstante o enorme terreno fértil por ser desbravado pelo sociologo, Peter
Berger vê na sociologia um passatempo, uma paixão individual do sociólogo. Mas
se a realidade oferece ao sociólogo apenas trabalho e mais trabalho e tira
dele, do sociólogo, qualquer oportunidade de conforto, como pode ser a
sociologia um passatempo? Na verdade, a paixão faz do ofício do sociólogo um
passatempo. Um filósofo alemão do século XIX, Friedrich Nietzsche, já nos dizia
que quando se trabalha por e com prazer, não se trabalha, por assim dizer.
Assim, o ofício do sociólogo que consiste em resolver “quebra-cabeças” sociais
portanto, em resolver o que nos aparece mas sobre os quais não compreendemos, é
apenas prazer, passatempo e paixão. Para quem nos ouve de fora pode ser tentado
a pensar que, por isso mesmo, a sociologia não seja uma ciência séria.
Engana-se. Permitam-me dizer, assim ao alto, que os grandes avanços das
ciências (mas também da arte, da filosofia, etc.) tiveram como ponto de partida
apenas passatempos. Newton perguntara-se se a lua cairia uma vez que a maçã
caíra, Einstein perguntara-se sobre o que aconteceria ao relógio público se
corre-se a mesma velocidade que a velocidade da luz, Nietzsche perguntara-se
sobre de onde viriam os nossos valores “bom” e “mau”, etc. São questões banais,
de longe infantis, mas que possibilitaram condições para grandes avanços na
história do pensamento. Pois bem. Só nesse sentido a sociologia passa a ser um passatempo…
e um prazer para o sociólogo. O prazer de se questionar frequentemente, o
prazer de se incomodar das verdades simples. O prazer de não só viver, mas
também questionar a vivência. O prazer de ouvir e não acreditar. O prazer de
refletir, de não se contentar, de vasculhar inteligibilidades. O prazer de,
como nos disse Berger, ouvir vozes por detrás da porta do quarto e querer
espreitar pela fechadura. O prazer de querer ser criança, de querer voltar a
idade dos constantes “porquê” e “como”. O prazer de, enfim, ter tempo para
trabalhar. Mas em Moçambique os sociólogos reclamam de falta de tempo. Reclamam
do facto de, apaixonados pela sociologia, não conseguirem um tempinho para ela
pelas exigências vitais que a vida prática os cobra. Portanto, uma reclamação
legítima. Mas qual seria então o remédio para tal estado de coisas? Porque apesar
de a “paixão” não ser uma enfermidade, as paixões não correspondidas podem ser
os veículos para um corpo enfermo. Daí a necessidade de uma sociologia para os
tempos livres. Uma sociologia que, aproveitando-se dos pequenos espaços livres
do sociólogo — por exemplo, o espaço entre o jantar e a cama…e um pouco antes
do amor. Contou-se, por ele mesmo, que Thomas More escreveu a Utopia aproveitando-se deste espaço de
tempo pois era bastante ocupado para reflectir e escrever — dizia, uma
sociologia que ganha o seu terreno. Uma sociologia que, apesar de tudo, pelo
menos corresponde, apenas por um instante, as paixões do sociólogo de se sentar
e reflectir sobre qualquer banalidade da vida quotidiana achada, pelo seu
espírito crítico, na rua ao seu regresso do trabalho, no próprio trabalho ou
até mesmo no jantar que se deu antes de se sentar à sua mesa de trabalho. Neste
espaço livre, para os sociólogos ocupados demais para as paixões, a sociologia
acabaria ocupando. Uma sociologia para os tempos livres é o que as banalidades
e os detalhes da vida do dia-a-dia, abundante na nossa sociedade, oferecem ao
sociólogo, seja ele ocupado demais com ofícios estranhos seja ele ocupado
demais com… o quê?
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