domingo, 25 de novembro de 2018

Uma sociologia para os tempos livres


São banais e corriqueiros os fenómenos sociais que, em Moçambique, a sociologia prestaria mais a sua atenção. Na verdade, os “quebra-cabeças” que há nos fenómenos socais manifestados na realidade moçambicana, e os quais os sociólogos dedicar-se-iriam a vasculhar a sua inteligibilidade, estão dissimulados nas acções quotidianas das pessoas. Estão dissimulados no que as pessoas, a cada instante da sua vivência, e numa determinada situação, dizem, pensam, fazem ou sentem: o nosso abraço, os nossos sorrisos, os apertos de mãos, a nossa fala, o nosso ofício, a nossa diversão, a nossa percepção sobre a doença e a sua respectiva cura, as nossas crenças, os nossos mitos, as nossas dores, a nossa linguagem, os nossos “mal-entendidos”, as nossas intervenções públicas, os nossos recolhimentos, os nossos medos, receios ou as nossas coragens, em tudo isso, e em muito mais, encontram-se dissimulados os “quebra-cabeças sociológicos”. Nesse sentido, e numa sociedade animada e viva como a nossa, o que não faltaria ao sociólogo, como muito bem nos disse o sociólogo Elísio Macamo, seria trabalho. Trabalho que, por falta de energias para ele, aumenta a cada instante, a cada dia, numa dinâmica tal como se caracteriza qualquer realidade social. Entretanto, não obstante o enorme terreno fértil por ser desbravado pelo sociologo, Peter Berger vê na sociologia um passatempo, uma paixão individual do sociólogo. Mas se a realidade oferece ao sociólogo apenas trabalho e mais trabalho e tira dele, do sociólogo, qualquer oportunidade de conforto, como pode ser a sociologia um passatempo? Na verdade, a paixão faz do ofício do sociólogo um passatempo. Um filósofo alemão do século XIX, Friedrich Nietzsche, já nos dizia que quando se trabalha por e com prazer, não se trabalha, por assim dizer. Assim, o ofício do sociólogo que consiste em resolver “quebra-cabeças” sociais portanto, em resolver o que nos aparece mas sobre os quais não compreendemos, é apenas prazer, passatempo e paixão. Para quem nos ouve de fora pode ser tentado a pensar que, por isso mesmo, a sociologia não seja uma ciência séria. Engana-se. Permitam-me dizer, assim ao alto, que os grandes avanços das ciências (mas também da arte, da filosofia, etc.) tiveram como ponto de partida apenas passatempos. Newton perguntara-se se a lua cairia uma vez que a maçã caíra, Einstein perguntara-se sobre o que aconteceria ao relógio público se corre-se a mesma velocidade que a velocidade da luz, Nietzsche perguntara-se sobre de onde viriam os nossos valores “bom” e “mau”, etc. São questões banais, de longe infantis, mas que possibilitaram condições para grandes avanços na história do pensamento. Pois bem. Só nesse sentido a sociologia passa a ser um passatempo… e um prazer para o sociólogo. O prazer de se questionar frequentemente, o prazer de se incomodar das verdades simples. O prazer de não só viver, mas também questionar a vivência. O prazer de ouvir e não acreditar. O prazer de refletir, de não se contentar, de vasculhar inteligibilidades. O prazer de, como nos disse Berger, ouvir vozes por detrás da porta do quarto e querer espreitar pela fechadura. O prazer de querer ser criança, de querer voltar a idade dos constantes “porquê” e “como”. O prazer de, enfim, ter tempo para trabalhar. Mas em Moçambique os sociólogos reclamam de falta de tempo. Reclamam do facto de, apaixonados pela sociologia, não conseguirem um tempinho para ela pelas exigências vitais que a vida prática os cobra. Portanto, uma reclamação legítima. Mas qual seria então o remédio para tal estado de coisas? Porque apesar de a “paixão” não ser uma enfermidade, as paixões não correspondidas podem ser os veículos para um corpo enfermo. Daí a necessidade de uma sociologia para os tempos livres. Uma sociologia que, aproveitando-se dos pequenos espaços livres do sociólogo — por exemplo, o espaço entre o jantar e a cama…e um pouco antes do amor. Contou-se, por ele mesmo, que Thomas More escreveu a Utopia aproveitando-se deste espaço de tempo pois era bastante ocupado para reflectir e escrever — dizia, uma sociologia que ganha o seu terreno. Uma sociologia que, apesar de tudo, pelo menos corresponde, apenas por um instante, as paixões do sociólogo de se sentar e reflectir sobre qualquer banalidade da vida quotidiana achada, pelo seu espírito crítico, na rua ao seu regresso do trabalho, no próprio trabalho ou até mesmo no jantar que se deu antes de se sentar à sua mesa de trabalho. Neste espaço livre, para os sociólogos ocupados demais para as paixões, a sociologia acabaria ocupando. Uma sociologia para os tempos livres é o que as banalidades e os detalhes da vida do dia-a-dia, abundante na nossa sociedade, oferecem ao sociólogo, seja ele ocupado demais com ofícios estranhos seja ele ocupado demais com… o quê?

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