Pensar num e
estudar um quotidiano, complexo e dinâmico como o nosso, este quotidiano
moçambicano, não é tarefa fácil. Aos sociólogos moçambicanos são exigidos o
mais básico porém, apesar disso, o mais difícil numa sociedade onde as certezas
e as verdades simples imperam. Esta exigência básica é à maneira do sociólogo
moçambicano Carlos Serra, nomeadamente “duvidai”. Eis a exigência básica para o
ofício do sociólogo. Mas duvidar significa desejar pensar diferente. Significa,
para além disso, olhar com desconfiança o que as pessoas, na sua experiência
vivenciada, dizem, fazem, pensam ou sentem. Duvidar significa, enfim, ser um
adepto fiel e apaixonado por uma pequena palavra, por um pequeno advérbio
gramatical, ser adepto e apaixonado pelo desafiante e desconfortável “talvez”.
Mas para uma sociedade onde há abundância de adeptos do “está claro”, de “o
certo é que…” e de “o que está acontecendo é isso” ser da oposição portanto,
ser adepto, ser quase piamente apaixonado pelo “Talvez” passa a ser uma
aventura perigosa. Para começar, o próprio “talvez”, ele mesmo, já é perigoso.
Como penso que devem estar a adivinhar, tomo o talvez como sinónimo de dúvida. E a dúvida,
numa situação em que o “povo” (aí incluindo analistas e activistas) parece
necessitar de cada vez mais certezas, exige um olhar com desconfiança a tudo o
que nos aparece como dado, como uma verdade pronto-a-ser-usada. Mas ela, a dúvida, este alicerce para qualquer empreendimento sociológico, nunca
exige do sociólogo um olhar com desdém. Há diferenças entre estes olhares. Olhar com desconfiança implica, ao
sociólogo, desejar compreender o comportamento social dos indivíduos nas
relações sociais por eles mantidas. Isso é do ofício do cientista social. Mas
olhar com desdém implica ter a ganância de assimilar tais comportamentos ao que
nós somos. Isso é da insensatez do ignorante. Ali, ainda seguindo Carlos Serra,
os juízos são de facto e aqui, pelo contrário, os juízos são de valor. E é
exactamente nesta diferença onde se diferem os sociólogos dos moralistas. O
primeiro caso abraça-se com os sociólogos mas do segundo distancia-se o sociólogo
e dele se apropriam os moralistas — que geralmente criam as piores desgraças
para uma nação em construção como a nossa. Entretanto, a força do social parece
empurrar alguns sociólogos para o moralismo. Parece empurrar alguns cientistas
sociais para julgamentos morais baseados em como as coisas devem ser e não em
como elas são. As redes sociais, os meios de comunicação social, os programas
de desenvolvimento "pré-fabricadoss", a carência financeira dos cientistas sociais (pois
trabalhos académicos e intelectuais são pessimamente remuneráveis!) mas também
a falta de sacrifícios, a falta de querer a ciência acima e apesar de tudo que,
creio, caracteriza alguns cientistas sociais parece determinar parcialmente
este estado de coisas. Compreende-se. O contexto no qual o sociólogo trabalha,
um contexto de pobreza e tudo, não o permite muita coisa para além de se
concentrar mais na sua família e amigos. Mas só que assim, sinto, a própria
sociologia (ou as ciências sociais no geral) corre perigos. Ela corre perigo
quando o moralismo e a confirmação apenas de sentimentos imperam sobre a
procura desenfreada pela compreensão das relações sociais. Falando com alguma vontade de rigor, a
própria sociologia corre perigo quando inexiste, como no nosso caso, uma classe
ou uma luta para consolidação de uma classe de cientistas sociais. A própria
sociologia corre perigo quando o “talvez” é desvalorizado ou quando o mesmo
perde, cada vez mais, o seu espaço para o “está
claro”; para o “é evidente…”;
para o “isto é isto”; e para o “o que de facto está acontecendo é…”. A
própria sociologia corre perigo quando o espaço público encontra-se ocupado por
estas sagradas entidades para a esmagadora maioria pérola indiana. Nesse
sentido, um novo tipo de sociólogos são chamados a existir e a insistir.
Sociólogos que amam o perigo. Sociólogos que se condenaram a ser inconformados.
Sociólogos que, numa realidade social que construímos e que poderemos
reconstruí-la, não se fartam de ir em contra mão social. São sociólogos do
amanha. São sociólogos dos advérbios de dúvida, sociólogos cientes dos perigos
que enfrentam quando são guiados pelos perigosos “Talvez”. Os perigosos
“talvez” já propostos, cada um à sua maneira, pelos sociólogos Carlos Serra e
Elísio Macamo. Estes sociólogos para amanha precisam de fundar e querer
introduzir uma nova sociologia. Uma sociologia urgente como a sociologia do
quotidiano. A tal sociologia para já.
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