terça-feira, 17 de outubro de 2017

O cotidiano para o sociólogo, do sociólogo para o cotidiano

Sempre que sou chamado de sociólogo, sinto calafrios nos intestinos. Isso deve-se por dois motivos que se complementam mutuamente. O primeiro tem a ver com o facto de ser sociólogo significar algo de muita responsabilidade. Não só porque ele, o sociólogo, é tido como alguém que sabe ou que se acha que sabe tudo mas também porque, aos olhos do leigo, tratasse de alguém que tem qualquer “afirmação” útil sobre qualquer problema social, político ou as vezes até mágico. Na verdade, esta responsabilidade é vista de dois polos diferentes. Nomeadamente o dos leigos esperançosos da última palavra do sociólogo e o do próprio sociólogo. Por outras palavras, enquanto os leigos esperam do sociólogo a responsabilidade de dizer, por exemplo, que o país é pobre por causa da governação corrupta dos dirigentes, o sociólogo, por sua vez, vê-se na responsabilidade de duvidar desta afirmação e transformá-la, se necessário, em hipótese. Uma responsabilidade tão nobre que para o leigo não é de lá grande importância.

O segundo motivo tem a ver com o facto da vida do sociólogo não ser fácil no nosso país. Muitas vezes ele é confrontado com uma situação que o coloca entre a sua sociologia, a fome que sente e o desejo de ser bem visto na sociedade. Ele é convidado muitas vezes a opinar, comentar e a informar e pouquíssimas vezes a investigar. Mas a sociologia é também, e principalmente, uma disciplina investigativa. A sua base de sobrevivência na disputa entre as ciências é à maneira de Carlos Serra, este sociólogo moçambicano que, pelo infortúnio do acaso, temos a sorte de sermos o seu contemporâneo: duvidai e investigai. Isso é também uma responsabilidade nobre. Tão nobre quanto desinteressante num país alicerçado em fofocas, certezas, conversas dos corredores e com que tamanha dificuldade de dizer que não se sabe! Questionar aqui não é tarefa fácil. É preciso ter a coragem de um Carlos Serra e de um Elísio Macamo. Com tantos problemas que temos a investigação sociológica passa a ser um desperdício de tempo e dinheiro.

No texto que aqui apresento procuro simplesmente identificar algumas imagens erróneas do sociólogo que as apanhei por acaso aqui, ali e acolá. Procuro de forma muita breve apresentar como o sociólogo é visto no cotidiano pérola indiano para de seguida propor o seu papel ou a sua importância para a compreensão do nosso cotidiano. É um objectivo sem interesse, reconheço. Mas prontos. Os sociólogos já estão habituados a empreendimentos desinteressantes. No fundo, creio, este “mau” hábito dos sociólogos está profundamente enraizado nas matrizes da nossa própria sociedade. Ela não dá, como queria Elísio Macamo no prefácio da segunda edição da obra de Carlos Serra, “Combates Pela Mentalidade Sociológica”, trabalho ao ocioso. Dá sim trabalho ao sofredor. Em Moçambique o sociólogo é, pelo menos aqueles que tomam a sociologia como “paixão individual”, um sofredor. Sofre por uma sociedade besta e, muitas vezes, recebe em troca apenas bajulações, por um lado e por outro, quando mais rigoroso for na sua análise, desprezo.

Algumas imagens do sociólogo no cotidiano

No seu cotidiano o sociólogo enfrenta sempre o desafio de esclarecer o que de facto ele faz. E isso ocorre porque a comunidade leiga, diga-se, constrói algumas imagens distorcidas do sociólogo talvez para compensar o seu desconhecimento de uma profissão tão nobre no país como desafiante e comprometedora. Nobre porque é de louvar uma profissão que o único ofício é, por exemplo, ficar num canto analisando o conflito entre a Renamo e o Governo enquanto as paixões, emoções e o caus desfilam a sua classe nos ânimos das gentes. É também uma profissão desafiante em Moçambique pois o nosso país, delirante “por natureza”, quer soluções “pronto-a-vestir” para problemas que nem se quer conhecemos de facto. Por isso a profissão do sociólogo é também comprometedora. Pois o sociólogo depara-se no seu dia-a-dia com algumas precepções sobre ele que o deixa, as vezes, com o sistema nervoso sempre na irritação. São imagens erróneas que são usadas no dia-a-dia para identificar o sociólogo na relação com o seu ofício. São elas que de seguida apresento.

Uma primeira imagem que apresento aqui está relacionada com o que tenho chamado por “a imagem dos três S” — Sociologia-social-socialista — que, curiosamente, já encerra nela duas imagens erróneas. De um lado, parte-se do pressuposto de que quem cursa sociologia tem, antes de tudo, o papel de ser alguém social. Com “ser social” referem-se, na verdade, ao facto de o sociólogo ser uma “boa pessoa”: não zanga, mas entende! Conversa com todos, é amigável e respeita os mais velhos. Segue as regras da família pois as percebe muito bem. Tem muitos amigos e adora conversar. O sociólogo é, enfim, e dizendo a brasileiro, um “cara legal”. Por outro lado, há um pressuposto de que o sociólogo é, no seu fundamento, socialista. Ou seja, ele só pode seguir as profecias do santo reverendo Karl Marx e os seus subalternos discípulos de hoje e de ontem. Como sociólogo não posso ser egoísta. É contra o livro sagrado. O egoísmo, apesar de toda confusão sobre este termo, é coisa nojenta e desumana. Nesta perspetiva o sociólogo passa a ser sempre criticado e o seu ofício totalmente desqualificado se afirmar, só por exemplo, e também por mera brincadeira, que os trabalhadores são explorados porque querem e os camponeses são pobres pela sua própria preguiça. Mas brincadeiras fora, o trabalho e o carácter do sociólogo será desqualificado, mesmo que a sua investigação, rigorosa que seja, lhe leve por esta direção. Isso ocorreu de forma febril no período samoriano. Tudo que era sociólogo teria que ser marxista. Nos dias de hoje sociólogos não faltam que andam decepcionados pelo que hoje Moçambique tornou-se ou, falando de forma correcta, sentem que se tornou. Andam frustrados. Sonham ainda com uma revolução que os possa levar para o paraíso socialista que idealizaram e idealizam. Esta imagem do sociólogo socialista é bastante comum no Brasil, poucos sociólogos se posicionam como liberais por lá. “Lib” não é o mesmo que “Soci” logo, não está no grupo. A sociologia (dizem os leigos) tem a ver com a sociedade e, por isso, com o socialismo. Cabe ao sociólogo acompanhar os indivíduos, esta força de trabalho, estes oprimidos e explorados, ao seu paraíso idealizado ontem, nostálgicos hoje. Deve ser por esta imagem que se dedica muito tempo ao estudo da pobreza e nunca da riqueza. Todo rico por aqui, numa análise rigorosamente sociológica, é corrupto ou de negócios sujos. O país real (dizem os marxistas) é feito pelos pobres e o falso pelos ricos.

Uma outra imagem que aqui apresento já foi abordada pelo sociólogo Peter Berger na sua Perspectiva sociológica — uma visão humanística de 2001. É a imagem do sociólogo visto como reformador social. Pois embora o autor se referia aos sociólogos Norte americanos, aqui em Moçambique ela parece bastante corriqueira. É a imagem do sociólogo como um indivíduo que muda a ordem caótica das coisas ou, pelo menos (e muitas vezes é assim) sabe como mudar. É uma imagem do sociólogo apresentado, como poderei desenvolver mais adiante, mais ou menos como um curandeiro. O sociólogo, segundo esta perspetiva, é um amável assessor político que sabe, mais do que ninguém, como, quando e porque uma sociedade deve mudar. Quando vai a um programa televisivo e deparando-se, por exemplo, com um problema sobre os jovens de hoje em dia (estes mesmos que não respeitam os mais velhos) o sociólogo precisa de dar a resposta a seguinte pergunta: “Senhor sociólogo, como podemos acabar com estas coisas!”. Ele, o sociólogo, tem como tarefa acabar com o mal no país e construir uma nova sociedade. Uma sociedade sem guerra, mas com só paz. Sem fome, mas com só saciedade. A decepção aparece quando se deparam com um sociólogo que diz que a Guerra é uma outra solução e é compensatória no seu limite. Para a “rés gregária pérola indiana este nada teria a ver com o sociólogo pois, aos seus olhos, este tem a função de ser pelas boas coisas. E a paz é uma destas coisas. E ele, o sociólogo, é um santo!

Esta imagem do sociólogo se relaciona com uma outra. Nomeadamente o sociólogo visto como alguém com poderes quase mágicos para descobrir o que ninguém sabe. Dois exemplos colocaram a nu esta imagem. Um dos exemplos tem a ver com as negociações que ocorriam no Centro de Conferência Joaquim Chissano durante o conflito político entre o Governo e a Renamo. O sociólogo era chamado para explicar o que se conversava lá dentro. Para o leigo, este sociólogo, um potencial membro da AMETRAMO, está munido de ferramentas que possibilitam o descobrimento, daqui-para-aqui, das causas dos grandes fenómenos que acontecem na sociedade. Quanto mais malignos forem os tais fenómenos, melhor: guerra, fome, casamentos prematuros, mendicidade, criminalidade, etc. Ele, o sociólogo, é expert em expurgar o mal. Se o Doutor Assan dos grandes lagos tem os seus búzios e a sua bacia de água, o Doutor sociólogo tem, na verdade, algo de muito superior: a sua sociologia. Esta aparece como um espírito a quem o Doutor Sociólogo precisa de consultar. Após o seu convite à TV a sua receita prévia é simples e básica: lê dois jornais sobre o incidente, abre o seu oráculo para apreender os versículos (que ele chama de teoria), prepara o seu terno e gravata, arranja algumas rugas na cara e uns óculos de vista bem à altura. E já está: “O que está acontecendo é isto…”, diz o Doutor sociólogo.

O outro exemplo tem a ver com o fenómeno dos desmaios nas escolas tão espetacular quanto uma “sociedade de espetáculo” como a nossa. Nunca houve tanta disputa de legitimidade do conhecimento naquele período. O sociólogo, a par com o seu homólogo da AMETRAMO, já se encontrava munido com as suas ferramentas mágico-mitológicas de descobrimento do espírito que fazia desmaiar as meninas. “O que está a acontecer Doutor? E como se pode resolver isso?”. Era a questão. O “Doutor” ai era, dum lado, o Doutor Assan dos Grandes Lagos que obteve o grau pela vias costumeiras e, do outro, o sábio Doutor sociólogo que obteve o seu grau através de alguns tempos nas cadeiras do anfiteatro. Ambos são considerados como possuidores de conhecimentos supremos. Com capacidades mágicas de fazer profundos descobrimentos. E aqui o sociólogo deve, a par com as suas rugas na cara, fazer um diagnóstico profundo do que de facto está acontecendo no nosso país. E isso em trinta minutos de antena. Nestes trinta minutos o nosso saudoso sociólogo investiga, analisa e informa.

E assim o sociólogo desfila a sua classe nas matrizes da vegetação tomando exactamente a sua cor. Mandando o método para as favas apegando-se somente nas suas incríveis conclusões. Os meios de comunicações sociais pelo menos conseguem ver nisso algo de sobrenatural. Conseguem identificar, propagar e ao mesmo tempo criar um “cara legal”, um socialista por profissão, um reformador social quando a sociedade enfrenta certos males ou um curandeiro dotado de poderes mágicos-mitológicos que consegue descobrir “espíritos do mal”. E, juntando tudo isso numa só percepção, chamam de “nosso sociólogo”! “Nosso sociólogo” é, ao mesmo tempo, um produto das imagens erróneas sobre ele, um destaque nos meios de comunicações de massa e uma cascavel das vegetações secas nas matas da amazónia.

Mas, então, qual é a importância do sociólogo para o cotidiano? — As últimas considerações

Trouxe algumas imagens erróneas do sociólogo no nosso cotidiano. Existem várias, para falar a verdade. Mas se são errôneas, então quem é o sociólogo e qual é a sua importância para o cotidiano? Para responder a esta questão Berger começou por identificar quem não era sociólogo. Mas eu vou directo ao assunto. O sociólogo é, na verdade, uma criatura bizarra e desconfiada. Aquele que vive preocupado com os homens querendo saber o que fazem, como fazem, o que dizem fazendo, o que dizem que estão fazendo e a relação de todas estas questões. O sociólogo é aquele que se intromete na vida dos outros. Não para transformá-los, ludibriá-los ou assimilá-los a seu favor. Mas apenas para compreendê-los. Mas porque compreender? Por nada mais para além da própria compreensão. Tal como nos ensinou Berger, a sociologia é apenas uma tentativa de compreensão. O sociólogo, assim nos disse o grande Carlos Serra no seu Blogue, é aquele que tenta tirar a casca para entender os gomos mas sempre ciente de que o mais importante a apreender é a própria casca. Ele é inquieto e incomodado. Falando sério, de certa forma ele até enerva. É que as suas conversas, enquanto no seu ofício, são tendenciosas. Não no sentido de que induz os enunciados dos outros a seu favor mas porque sempre tem um objectivo a cumprir: compreender. Qualquer local é o seu laboratório. Basta que haja gente fazendo coisas e as vezes até mesmo coisas feitas pela gente.

Mas ele, o sociólogo, tem a sua sociologia como a sua própria paixão. Compreende pela compreensão e o resto não faz parte do seu campo de interesse. Ora, tal como Arquimedes morreu, conta-se, defendendo os seus círculos (“Não mexa nos meus círculos!”), o sociólogo morre defendendo o seu campo de análise — “Não interrompa o meu desassossego!”. Ele é um apaixonado pela sociologia. É como um artista. Sem a sua arte, tem a sua morte. Colocado de forma Nietzscheana, o sociólogo, tal como o artista, é bem modesto nas suas necessidades: minha sociologia, meu pão. Não importa se o seu estudo vai ser útil para a Renamo ou para Frelimo, para o MDM ou para a Fórum Mulher, ele simplesmente estuda. E isso é tão lindo que um sociólogo que se faz já clássico, Erving Goffman, interessou-se em estudar as representações sociais do Eu na vida cotidiana. Coisas que são mesquinhas e bizarras. Corriqueiras e desinteressadas. Mas o que ele quis com o seu estudo? Nada para além de estudá-las. É claro que teve repercussões e utilidades para diferentes vertentes da vida e nas outras áreas de interesse. Mas o seu interesse era bem modesto: compreender!

E isso é lindo. E isso faz da sociologia uma disciplina entre outras disciplinas. Uma ciência entre outras ciências. Isso faz do sociólogo um indivíduo preocupado com a vida de todos incluindo da sua mesmo. Por isso ele estuda aos outros e a ele mesmo com toda a recomendação de Carlos Serra, duvidando e investigando. Isso faz dele importante para o nosso cotidiano tão intensamente vivido entretanto pouco compreendido.   Nosso mundo precisa de ser compreendido, apreendido e, por isso, cada vez mais conquistado. Tanto para nos reinventarmos quanto para nos construirmos. O sociólogo e a sociologia, aí, são bem necessários. Questionar o que leva as pessoas a sorrirem, como é feita o ritual das conversas, como as crianças representam os seus mundos enfim, questionar as acções do dia-a-dia é uma beleza para quem faz sociologia.


Pois bem. O sociólogo, para além das imagens erróneas que é atribuído no seu cotidiano, tem uma grande importância para o nosso cotidiano. Interessar-se pelo que as pessoas falam e pelo que fazem falando é um contributo deveras importante para nós. Nós nos desconhecemos a nós mesmos. Mas especulamo-nos. Nós vivemos correndo todo o dia, dia e noite sem nunca prestarmos atenção no que de facto estamos fazendo. A certeza de que estamos a fazer algo já é suficiente para nós. Nós, moçambicanos pelo menos. Mas o sociólogo precisa de se colocar na incerteza e na dúvida. Ter a coragem de parar e perguntar-se se o que as pessoas fazem todos os dias é exactamente isso que dizem estar a fazer. Tenho por me a intuição de que é exactamente este aspecto que faz com que o sociólogo seja visto, apesar de tudo, como um curandeiro. Por isso o sociólogo deve ser humilde. Saber que não sabe e, para além disso, dizer que não sabe. Não só para uma boa compreensão do nosso cotidiano como também para o desenvolvimento da nossa própria ciência. A sociologia e o sociólogo são os nossos grandes amigos.   

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