Sempre que sou chamado de sociólogo,
sinto calafrios nos intestinos. Isso deve-se por dois motivos que se
complementam mutuamente. O primeiro tem a ver com o facto de ser sociólogo
significar algo de muita responsabilidade. Não só porque ele, o sociólogo, é
tido como alguém que sabe ou que se acha que sabe tudo mas também porque, aos
olhos do leigo, tratasse de alguém que tem qualquer “afirmação” útil sobre
qualquer problema social, político ou as vezes até mágico. Na verdade, esta
responsabilidade é vista de dois polos diferentes. Nomeadamente o dos leigos
esperançosos da última palavra do sociólogo e o do próprio sociólogo. Por
outras palavras, enquanto os leigos esperam do sociólogo a responsabilidade de
dizer, por exemplo, que o país é pobre por causa da governação corrupta dos
dirigentes, o sociólogo, por sua vez, vê-se na responsabilidade de duvidar
desta afirmação e transformá-la, se necessário, em hipótese. Uma
responsabilidade tão nobre que para o leigo não é de lá grande importância.
O segundo motivo tem a ver com o facto
da vida do sociólogo não ser fácil no nosso país. Muitas vezes ele é confrontado
com uma situação que o coloca entre a sua sociologia, a fome que sente e o
desejo de ser bem visto na sociedade. Ele é convidado muitas vezes a opinar,
comentar e a informar e pouquíssimas vezes a investigar. Mas a sociologia é
também, e principalmente, uma disciplina investigativa. A sua base de
sobrevivência na disputa entre as ciências é à maneira de Carlos Serra, este
sociólogo moçambicano que, pelo infortúnio do acaso, temos a sorte de sermos o
seu contemporâneo: duvidai e investigai.
Isso é também uma responsabilidade nobre. Tão nobre quanto desinteressante num
país alicerçado em fofocas, certezas, conversas dos corredores e com que
tamanha dificuldade de dizer que não se sabe! Questionar aqui não é tarefa
fácil. É preciso ter a coragem de um Carlos Serra e de um Elísio Macamo. Com
tantos problemas que temos a investigação sociológica passa a ser um
desperdício de tempo e dinheiro.
No texto que aqui apresento procuro
simplesmente identificar algumas imagens erróneas do sociólogo que as apanhei
por acaso aqui, ali e acolá. Procuro de forma muita breve apresentar como o
sociólogo é visto no cotidiano pérola indiano para de seguida propor o seu
papel ou a sua importância para a compreensão do nosso cotidiano. É um objectivo
sem interesse, reconheço. Mas prontos. Os sociólogos já estão habituados a
empreendimentos desinteressantes. No fundo, creio, este “mau” hábito dos
sociólogos está profundamente enraizado nas matrizes da nossa própria
sociedade. Ela não dá, como queria Elísio Macamo no prefácio da segunda edição
da obra de Carlos Serra, “Combates Pela Mentalidade Sociológica”, trabalho ao
ocioso. Dá sim trabalho ao sofredor. Em Moçambique o sociólogo é, pelo menos
aqueles que tomam a sociologia como “paixão individual”, um sofredor. Sofre por
uma sociedade besta e, muitas vezes, recebe em troca apenas bajulações, por um
lado e por outro, quando mais rigoroso for na sua análise, desprezo.
Algumas
imagens do sociólogo no cotidiano
No seu cotidiano o sociólogo enfrenta
sempre o desafio de esclarecer o que de facto ele faz. E isso ocorre porque a
comunidade leiga, diga-se, constrói algumas imagens distorcidas do sociólogo
talvez para compensar o seu desconhecimento de uma profissão tão nobre no país
como desafiante e comprometedora. Nobre porque é de louvar uma profissão que o
único ofício é, por exemplo, ficar num canto analisando o conflito entre a
Renamo e o Governo enquanto as paixões, emoções e o caus desfilam a sua classe
nos ânimos das gentes. É também uma profissão desafiante em Moçambique pois o
nosso país, delirante “por natureza”, quer soluções “pronto-a-vestir” para
problemas que nem se quer conhecemos de facto. Por isso a profissão do
sociólogo é também comprometedora. Pois o sociólogo depara-se no seu dia-a-dia
com algumas precepções sobre ele que o deixa, as vezes, com o sistema nervoso
sempre na irritação. São imagens erróneas que são usadas no dia-a-dia para
identificar o sociólogo na relação com o seu ofício. São elas que de seguida
apresento.
Uma primeira imagem que apresento aqui
está relacionada com o que tenho chamado por “a imagem dos três S” — Sociologia-social-socialista — que,
curiosamente, já encerra nela duas imagens erróneas. De um lado, parte-se do
pressuposto de que quem cursa sociologia tem, antes de tudo, o papel de ser alguém
social. Com “ser social” referem-se, na verdade, ao facto de o sociólogo ser
uma “boa pessoa”: não zanga, mas entende! Conversa com todos, é amigável e
respeita os mais velhos. Segue as regras da família pois as percebe muito bem.
Tem muitos amigos e adora conversar. O sociólogo é, enfim, e dizendo a
brasileiro, um “cara legal”. Por outro lado, há um pressuposto de que o
sociólogo é, no seu fundamento, socialista. Ou seja, ele só pode seguir as
profecias do santo reverendo Karl Marx e os seus subalternos discípulos de hoje
e de ontem. Como sociólogo não posso ser egoísta. É contra o livro sagrado. O
egoísmo, apesar de toda confusão sobre este termo, é coisa nojenta e desumana.
Nesta perspetiva o sociólogo passa a ser sempre criticado e o seu ofício
totalmente desqualificado se afirmar, só por exemplo, e também por mera brincadeira,
que os trabalhadores são explorados porque querem e os camponeses são pobres
pela sua própria preguiça. Mas brincadeiras fora, o trabalho e o carácter do
sociólogo será desqualificado, mesmo que a sua investigação, rigorosa que seja,
lhe leve por esta direção. Isso ocorreu de forma febril no período samoriano.
Tudo que era sociólogo teria que ser marxista. Nos dias de hoje sociólogos não
faltam que andam decepcionados pelo que hoje Moçambique tornou-se ou, falando
de forma correcta, sentem que se tornou. Andam frustrados. Sonham ainda com uma
revolução que os possa levar para o paraíso socialista que idealizaram e
idealizam. Esta imagem do sociólogo socialista é bastante comum no Brasil,
poucos sociólogos se posicionam como liberais por lá. “Lib” não é o mesmo que “Soci”
logo, não está no grupo. A sociologia (dizem os leigos) tem a ver com a
sociedade e, por isso, com o socialismo. Cabe ao sociólogo acompanhar os
indivíduos, esta força de trabalho, estes oprimidos e explorados, ao seu
paraíso idealizado ontem, nostálgicos hoje. Deve ser por esta imagem que se
dedica muito tempo ao estudo da pobreza e nunca da riqueza. Todo rico por aqui,
numa análise rigorosamente sociológica, é corrupto ou de negócios sujos. O país
real (dizem os marxistas) é feito pelos pobres e o falso pelos ricos.
Uma outra imagem que aqui apresento já
foi abordada pelo sociólogo Peter Berger na sua Perspectiva sociológica — uma visão humanística de 2001. É a imagem do sociólogo visto como reformador social. Pois embora o autor
se referia aos sociólogos Norte americanos, aqui em Moçambique ela parece
bastante corriqueira. É a imagem do sociólogo como um indivíduo que muda a
ordem caótica das coisas ou, pelo menos (e muitas vezes é assim) sabe como
mudar. É uma imagem do sociólogo apresentado, como poderei desenvolver mais
adiante, mais ou menos como um curandeiro. O sociólogo, segundo esta
perspetiva, é um amável assessor político que sabe, mais do que ninguém, como,
quando e porque uma sociedade deve mudar. Quando vai a um programa televisivo e
deparando-se, por exemplo, com um problema sobre os jovens de hoje em dia
(estes mesmos que não respeitam os mais velhos) o sociólogo precisa de dar a
resposta a seguinte pergunta: “Senhor sociólogo, como podemos acabar com estas
coisas!”. Ele, o sociólogo, tem como tarefa acabar com o mal no país e
construir uma nova sociedade. Uma sociedade sem guerra, mas com só paz. Sem
fome, mas com só saciedade. A decepção aparece quando se deparam com um
sociólogo que diz que a Guerra é uma outra solução e é compensatória no seu
limite. Para a “rés gregária” pérola indiana este nada teria a ver
com o sociólogo pois, aos seus olhos, este tem a função de ser pelas boas
coisas. E a paz é uma destas coisas. E ele, o sociólogo, é um santo!
Esta imagem do sociólogo se relaciona
com uma outra. Nomeadamente o sociólogo visto como alguém com poderes quase mágicos
para descobrir o que ninguém sabe. Dois exemplos colocaram a nu esta imagem. Um
dos exemplos tem a ver com as negociações que ocorriam no Centro de Conferência
Joaquim Chissano durante o conflito político entre o Governo e a Renamo. O
sociólogo era chamado para explicar o que se conversava lá dentro. Para o leigo,
este sociólogo, um potencial membro da AMETRAMO, está munido de ferramentas que
possibilitam o descobrimento, daqui-para-aqui,
das causas dos grandes fenómenos que acontecem na sociedade. Quanto mais
malignos forem os tais fenómenos, melhor: guerra, fome, casamentos prematuros,
mendicidade, criminalidade, etc. Ele, o sociólogo, é expert em expurgar o mal. Se o Doutor Assan dos grandes lagos tem
os seus búzios e a sua bacia de água, o Doutor sociólogo tem, na verdade, algo
de muito superior: a sua sociologia. Esta aparece como um espírito a quem o
Doutor Sociólogo precisa de consultar. Após o seu convite à TV a sua receita
prévia é simples e básica: lê dois jornais sobre o incidente, abre o seu
oráculo para apreender os versículos (que ele chama de teoria), prepara o seu terno e gravata, arranja algumas rugas na cara
e uns óculos de vista bem à altura. E já está: “O que está acontecendo é isto…”, diz o Doutor sociólogo.
O outro exemplo tem a ver com o fenómeno
dos desmaios nas escolas tão espetacular quanto uma “sociedade de espetáculo”
como a nossa. Nunca houve tanta disputa de legitimidade do conhecimento naquele
período. O sociólogo, a par com o seu homólogo da AMETRAMO, já se encontrava
munido com as suas ferramentas mágico-mitológicas de descobrimento do espírito
que fazia desmaiar as meninas. “O que está a acontecer Doutor? E como se pode
resolver isso?”. Era a questão. O “Doutor” ai era, dum lado, o Doutor Assan dos
Grandes Lagos que obteve o grau pela vias costumeiras e, do outro, o sábio
Doutor sociólogo que obteve o seu grau através de alguns tempos nas cadeiras do
anfiteatro. Ambos são considerados como possuidores de conhecimentos supremos.
Com capacidades mágicas de fazer profundos descobrimentos. E aqui o sociólogo
deve, a par com as suas rugas na cara, fazer um diagnóstico profundo do que de
facto está acontecendo no nosso país. E isso em trinta minutos de antena.
Nestes trinta minutos o nosso saudoso sociólogo investiga, analisa e informa.
E assim o sociólogo desfila a sua classe
nas matrizes da vegetação tomando exactamente a sua cor. Mandando o método para
as favas apegando-se somente nas suas incríveis conclusões. Os meios de
comunicações sociais pelo menos conseguem ver nisso algo de sobrenatural.
Conseguem identificar, propagar e ao mesmo tempo criar um “cara legal”, um socialista
por profissão, um reformador social quando a sociedade enfrenta certos males ou
um curandeiro dotado de poderes mágicos-mitológicos que consegue descobrir
“espíritos do mal”. E, juntando tudo isso numa só percepção, chamam de “nosso
sociólogo”! “Nosso sociólogo” é, ao mesmo tempo, um produto das imagens
erróneas sobre ele, um destaque nos meios de comunicações de massa e uma
cascavel das vegetações secas nas matas da amazónia.
Mas,
então, qual é a importância do sociólogo para o cotidiano? — As últimas
considerações
Trouxe algumas imagens erróneas do
sociólogo no nosso cotidiano. Existem várias, para falar a verdade. Mas se são
errôneas, então quem é o sociólogo e qual é a sua importância para o cotidiano?
Para responder a esta questão Berger começou por identificar quem não era
sociólogo. Mas eu vou directo ao assunto. O sociólogo é, na verdade, uma
criatura bizarra e desconfiada. Aquele que vive preocupado com os homens
querendo saber o que fazem, como fazem, o que dizem fazendo, o que dizem que
estão fazendo e a relação de todas estas questões. O sociólogo é aquele que se
intromete na vida dos outros. Não para transformá-los, ludibriá-los ou
assimilá-los a seu favor. Mas apenas para compreendê-los. Mas porque compreender?
Por nada mais para além da própria compreensão. Tal como nos ensinou Berger, a
sociologia é apenas uma tentativa de compreensão. O sociólogo, assim nos disse
o grande Carlos Serra no seu Blogue, é aquele que tenta tirar a casca para
entender os gomos mas sempre ciente de que o mais importante a apreender é a
própria casca. Ele é inquieto e incomodado. Falando sério, de certa forma ele até
enerva. É que as suas conversas, enquanto no seu ofício, são tendenciosas. Não
no sentido de que induz os enunciados dos outros a seu favor mas porque sempre
tem um objectivo a cumprir: compreender. Qualquer local é o seu laboratório.
Basta que haja gente fazendo coisas e as vezes até mesmo coisas feitas pela gente.
Mas ele, o sociólogo, tem a sua
sociologia como a sua própria paixão. Compreende pela compreensão e o resto não
faz parte do seu campo de interesse. Ora, tal como Arquimedes morreu, conta-se,
defendendo os seus círculos (“Não mexa nos meus círculos!”), o sociólogo morre
defendendo o seu campo de análise — “Não interrompa o meu desassossego!”. Ele é
um apaixonado pela sociologia. É como um artista. Sem a sua arte, tem a sua
morte. Colocado de forma Nietzscheana, o sociólogo, tal como o artista, é bem
modesto nas suas necessidades: minha
sociologia, meu pão. Não importa se o seu estudo vai ser útil para a Renamo
ou para Frelimo, para o MDM ou para a Fórum Mulher, ele simplesmente estuda. E
isso é tão lindo que um sociólogo que se faz já clássico, Erving Goffman,
interessou-se em estudar as representações sociais do Eu na vida cotidiana.
Coisas que são mesquinhas e bizarras. Corriqueiras e desinteressadas. Mas o que
ele quis com o seu estudo? Nada para além de estudá-las. É claro que teve
repercussões e utilidades para diferentes vertentes da vida e nas outras áreas
de interesse. Mas o seu interesse era bem modesto: compreender!
E isso é lindo. E isso faz da sociologia
uma disciplina entre outras disciplinas. Uma ciência entre outras ciências. Isso
faz do sociólogo um indivíduo preocupado com a vida de todos incluindo da sua
mesmo. Por isso ele estuda aos outros e a ele mesmo com toda a recomendação de
Carlos Serra, duvidando e investigando. Isso faz dele importante para o nosso
cotidiano tão intensamente vivido entretanto pouco compreendido. Nosso mundo precisa de ser compreendido,
apreendido e, por isso, cada vez mais conquistado. Tanto para nos reinventarmos
quanto para nos construirmos. O sociólogo e a sociologia, aí, são bem
necessários. Questionar o que leva as pessoas a sorrirem, como é feita o ritual
das conversas, como as crianças representam os seus mundos enfim, questionar as
acções do dia-a-dia é uma beleza para quem faz sociologia.
Pois bem. O sociólogo, para além das
imagens erróneas que é atribuído no seu cotidiano, tem uma grande importância
para o nosso cotidiano. Interessar-se pelo que as pessoas falam e pelo que
fazem falando é um contributo deveras importante para nós. Nós nos
desconhecemos a nós mesmos. Mas especulamo-nos. Nós vivemos correndo todo o
dia, dia e noite sem nunca prestarmos atenção no que de facto estamos fazendo.
A certeza de que estamos a fazer algo já é suficiente para nós. Nós,
moçambicanos pelo menos. Mas o sociólogo precisa de se colocar na incerteza e
na dúvida. Ter a coragem de parar e perguntar-se se o que as pessoas fazem
todos os dias é exactamente isso que dizem estar a fazer. Tenho por me a
intuição de que é exactamente este aspecto que faz com que o sociólogo seja
visto, apesar de tudo, como um curandeiro. Por isso o sociólogo deve ser
humilde. Saber que não sabe e, para além disso, dizer que não sabe. Não só para
uma boa compreensão do nosso cotidiano como também para o desenvolvimento da
nossa própria ciência. A sociologia e o sociólogo são os nossos grandes
amigos.
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