sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Weyo Muzugo ("Você é Branco"): Raça e Desgraça no Cotidiano

     A constituição do cotidiano é um atrativo interessante para quem na vida tem como distração, mas também atenção, as coisas simples ou aparentemente simples. É por isso que fazer sociologia é uma paixão. É uma atração e distração. O que parece banal e corriqueiro para os banais e corriqueiros, o sociólogo o faz relevante e, quantas vezes, ameaçador. Tem uma expressão que também caracteriza o cotidiano em Moçambique e espelha muito bem o que acabei de dizer. Em Quelimane, província da Zambézia, Centro de Moçambique, é comum ouvir a tal expressão com muita frequência. As pessoas que a expressam não fazem por serem mesquinhas, racistas ou criaturas bizarras com complexo de inferioridade. Pensar assim seria anti-sociológico. Elas fazem porque a experiência cotidiana, e não só cotidiana, as determina para tal. Na verdade, muitas expressões que várias vezes estruturam o cotidiano carregam com elas uma carga histórica dos seus expressadores. É o caso da expressão "Você é branco", comum no cotidiano "quelimanense".

    A raiz desta expressão está na história. Está na parte sociohistórica da experiência cotidiana das pessoas em Quelimane. Por isso a língua local passa a ser a melhor forma de captar a sua inteligibilidade: "Weyo muzugo". Sim, "Você é Branco". Ao pronunciarem esta expressão, claro que é possível expandir a interpretação para os moçambicanos no geral, eles querem dizer várias coisas. Eis algumas delas: "Você é boa pessoa"; "Você está bem de Vida"; "Você é rico", etc. O "Branco", o Muzugo, nesse caso, representa não só pessoas com boas condições de vida, mas também boas pessoas. Isso é bastante curioso na medida em que você vive a experiência nesta parte do Brasil onde a discussão sobre "raça" e "racismo" é bem mais forte que em Moçambique. Quantas vezes já ouvi pessoas me falando coisas como "Vocês de lá são boas pessoas". "Vocês", nesse caso, refere-se a pretos africanos. Isso tudo parece revelar a complexidade do cotidiano. Mas também, cá para mim, a sua graça e desgraça! Há dias, um amigo de Quelimane que há muito não falavamos insinuou que eu já estava bem de vida (nem sabe que sou um mestre desempregado!). E porquê estaria? - "Porque vês brancos todos os dias", respondeu ele. 

    Não há nada de supreendente nisso para um "petit sociologue" como eu. Já há algum tempo um amigo, também "Quelimanense", ao se referir da boa vontade e espírito nobre de um moçambicano que vivia para lá nas Europas, disse-me e convicto: "Aquele é branco!". Nada mais ele quis dizer para além de que ele é uma boa pessoa. Mas, no caso dos Quelimanenses, de onde viria esta representação dos brancos como "boa pessoa", "pessoa rica" ou "pessoa em boas condições de vida"? Tenho uma hipótese. E esta sugere que a representação viria da própria história. E no que diz respeito a forma como nesta veio, parece variar. Primeiro a Zambézia tornou-se, como os próprios Zambezianos acreditam,  um lugar carregado de desprezo em relação a outras províncias, principalmente as do Sul. Manuel de Araújo, o atual edil da atual capital da província, Quelimane, sempre reforça este aspeto e se propõe a recolocar a província nos patamares que antes tinha. Mas, espera aí! Antes, quando? No tempo colonial, evidentemente. Assim, dizer que "Você é branco", neste primeiro elemento, faz parte da referência que se teria do colono muitas vezes visto como bom, apesar de tudo. Falar do "Bom", nesse contexto, é falar de "ser branco". E ao se falar do "ser branco" tem-se o período colonial, principalmente na fase na qual o Sociólogo Carlos Serra chamou de políticas de "transição para a gestão de mentalidade", como referência.

    Mas esta é a primeira parte da hipótese. Tem uma segunda que não vai dar para desenvolver suficientemente por aqui. Tem a ver com a questão de assimilação. Os assimilados excluídos da construção do bem-estar do Estado moçambicano pós independência, ao se sentirem injustiçados pelas consideração que tinham com o "colono gestor de mentalidades", olham para o "preto" ("Kafri") como alguém que não presta. Que não quer ver o bem do outro. "Kafri", mesmo. Isto é, do "mato". É claro que tudo isso tem apenas um ar hipotético. Mas, acredito, parece ser pelo menos plausível. De qualquer forma, o que quero acentuar é um tanto quanto simples. O cotidiano é muito sociológico, por isso complexo. Uma expressão como "weyo muzugo" (você é branco), por exemplo, se for bem perseguida com uma atenção microscópica possível, pode nos levar até ao cabeludo fenómeno e pesada discussão sobre o "racismo" e a questão da "branquitude". Ela pode revelar muito a complexidade do valor da raça e essa desgraça que hoje assombra muito os que buscam o "estar-no-mundo" nova e dignamente. Principalmente para caso Brasileiro. Mas também para os "azugos" ("Brancos", no plural) que se encontram por ai. A expressão ajuda no trato com a raça, mas também na preocupação com a desgraça que ela traz. Tudo isso através de um microscópio apontado para o cotidiano sociológico.    


Confira o canal Humanidades em África. Aqui: https://youtu.be/xvR82l56QZE

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