Quando admiti para o
curso de Mestrado na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira,
localizada, também, no nordeste do Brasil, tive de imediato uma forte
apreciação do meu professor, Obede Suarte Baloi, do Departamento de Sociologia
da Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique, onde fiz a minha graduação em
Sociologia. A sua apreciação foi por ele apresentada na seguinte expressão:
“Mas sabes que lá é a região mais africana do Brasil? ”. Respondi que não, mas
que ainda bem que era assim. “Ainda bem que era assim” porque pensei que seria
uma oportunidade para olhar, com aquele “bom olhar” sociológico, uma
contraparte de uma região mais africana de um país que não é, seja em termos
geográficos e demográficos ou seja em termos sociais, africano. Mas ainda não
consegui ver esta “região mais africana” do Brasil. Todavia, pelas histórias
sobre as convivências no Ceará, ou, para ser mais concreto, esta parte do
Ceará. Nesse sentido, dá para sentir, bem no fundo do meu coração, esse “africano”
produzido pela história sendo que, por isso, não consegue escapar daqueles
termos constituídos pela mesma história, mas que até a atualidade assombram — e
com que assombração! — os espíritos contemporâneos, sejam eles brancos ou
pretos, “tradicionais” ou “modernos”. Termos como “racismo”, “pessoa de cor”;
“escravatura”; “colonialismo”; “subdesenvolvido”; “terceiro mundo”; “Crises,
conflitos e catástrofes”, etc., são constantemente cristalizados. Termos
produzidos; e produtores da história através de homens e mulheres, estes e
estas produtores da história.
Entretanto, pelas rápidas
observações e provisórias reflexões, senti que há uma necessidade de se
ultrapassar estas assombrações. Tenho dito, assim de cabeça quente, por assim
dizer, que o “racismo” é uma categoria que, enquanto categoria de e para
análise, não nos ajuda em muita coisa para além da sua possibilidade de acirrar
os ânimos e, em certa medida, atrofiar os espíritos. Acirra os ânimos porque a
luta contra a descriminação com base, não só no sentimento da cor da pele, como
também no sentimento do outro como diferente e não como singularidade é tão
necessária para reconstruir a história e qualquer necessidade é, ela mesma, em certa
medida, impulsionadora dos ânimos. Por isso também tem a possibilidade de
atrofiar os espíritos, espíritos críticos, para ser específico. Avaliações ou
análises feitas de cabeça quente podem levar a conclusões atrofiadas. Como muito bem tem dito o sociólogo Elísio
Macamo no que diz a constante utilização do “racismo” como categoria avaliativa,
as vezes nem se trata de “racismo”, mas de pura imbecilidade e idiotice das
pessoas em relação aos princípios que estariam na base dos constituintes das
relações sociais no cotidiano. Procurar ver estes constituintes é sempre um
empreendimento valioso para as interpelações das relações sociais do que a
constante propagação do termo “racismo”. Racismo, no cotidiano, é uma palavra. E
as palavras dão mais existência ao ato relacionados a elas quanto mais elas são
ditas: não têm, mas passam a ter poder. Por exemplo, de tanto os africanos
serem categorizados pela palavra “atrasados” acabamos atrasados. Isso a
história nos mostra em papéis brancos com escritas a tintas pretas.
Quero trazer nesta
reflexão o exemplo de um dos constituintes das relações sociais. Na verdade,
pretendo aqui exercitar uma análise de uma dada situação articulando dois
termos que os concebo como constituintes das relações sociais em situações de
convivência multirracial, multiétnica ou multinacional como é a convivência
cotidiana na Universidade de Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira. Estes constituintes são “agregação espontânea” com a sua
contraparte, nomeadamente “segregação espontânea”. Em que consistem? Consistem,
respetivamente, na aproximação e distanciamento do indivíduo num determinado
grupo com base no seu sentimento de pertença, sentimento este determinado por
aquilo que o sociólogo canadense Erving Goffman denominou por “definição da
situação”. Definir uma situação significa tomar decisões com base numa dada
circunstância em que o indivíduo se encontra. Mas esta definição da situação
não é exterior ao indivíduo, mas baseada em toda experiência vivenciada por
este em seu cotidiano e que lhe permitiu acumular aquilo que na fenomenologia
denomina-se por “estoque de conhecimento a mão”. Conhecimento este que o
permite tomar decisões.
Isso nos obriga a
esclarecer melhor os dois termos aqui em questão, nomeadamente “agregação
espontânea” e “segregação espontânea”. Ou melhor, por que dizemos que são
espontâneos enquanto os indivíduos tomam decisões com base na sua experiência
vivenciada que os permite definir a situação, definição esta que os permite
tomar decisões? Dizemos “espontâneo” não no sentido de “inconsciente”, mas no
sentido de que tomam decisões de forma deliberativa e imediata sem necessidade
de prévios questionamentos sistematizados ou problematizações sistematizadas das
suas ações. Trata-se de decisões tomadas no cotidiano das pessoas, nos seus
dia-a-dia, nas imediaticidades das suas vivências diárias. No nosso caso aqui,
a “segregação espontânea” indica a decisão de um indivíduo de se separar, mais
concretamente, de se auto separar de um grupo para se agregar a um outro grupo.
Portanto, no processo de “agregação espontânea”. Considere-se estes termos, por
exemplo, no contexto do “drama” momentâneo em que o indivíduo se encontra para
tomar decisões sobre em que grupo se integrar diante de diferentes
possibilidades: cristãos ou muçulmanos, brancos ou pretos, guineenses ou
Moçambicanos, etc. A partir do momento em que decide agregar-se a um grupo,
segrega-se do outro e vice-versa.
Vou trazer o exemplo
muito provisório. É de uma observação que tenho feito no cotidiano na
Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB),
no Ceará, da qual sou mestrando. De referir que são observações a partir das
minhas próprias experiências diárias próprio do meu lazer cotidiano. Esta é uma
observação em situações específicas: nos autocarros (ônibus) da universidade e
no Restaurante Universitário (RU). A UNILAB é plurinacional, plurirracial e
pluriétnica por excelência por isso um projeto lindo de se ter e, por isso, de
se viver. Tanto no autocarro (ônibus) como no RU cruzam-se brancos, pretos,
pardos, moçambicanos, brasileiros, cabo-verdianos, guineenses, timorenses, mulheres,
homens, transexuais, homossexuais, etc. Uma das decisões a serem tomadas é onde
se deve sentar e isso depende de com quem ou ao lado de quem se deve sentar. O
sentimento que tenho tido, pelo me nos a nível da questão da cor (poderia haver
mais variáveis como, por exemplo, “colegas do curso e de turma”), é de
existência de uma tendência a agregação, antes de mais nada, a partir da cor da
pele dos estudantes. O primeiro contato é de procurar saber onde se encontram
as pessoas da minha cor da pele e só depois procura-se saber, por exemplo, das
nacionalidades ou, se for o caso, da orientação sexual. A intimidade de duas
pessoas numa mesa ou num banco do ônibus depende mais da quantidade de
atributos considerados comum entre elas. Por exemplo, primeiro se vê (ou se
sente) que é preto, daí o conforto de sentar ao lado, depois se procura saber a
nacionalidade e, a partir daí, e se tiverem a mesma nacionalidade, mais íntimos
as pessoas se tornam. Depois daí podem vir outros elementos tais como o curso,
a religião, etc.
É claro que tudo que
trago aqui se encontra ao nível do sentimento ou, para sermos mais sinceros, do
meu pressentimento. A segregação e a agregação espontânea são apenas possibilidades.
Todavia, penso que procurar isso nas relações sociais e, a partir delas,
procurar perceber como elas constituem (ou estruturam?) as relações sociais é
muito mais valioso do que a procura de atos que podem ser racistas ou não
racistas, discriminatórios ou não discriminatórios. Não estou dizendo que tais
“construções” não existam, estou apenas dizendo, e opinando, que elas não nos
permitem compreender o processo de constituição de uma sociedade e nos empurra
pelas pancadas nas nucas para vasculha de causas e efeitos. Assim, uma
Integração Internacional que se quer a UNILAB (e que é de “louvar”), por
exemplo, passa pelo desafio de se encontrar e analisar os constituintes das
relações sociais que se querem integradas. A noção de “Internacional”, por
exemplo, seria um outro constituinte que poderíamos pensar, mas que, pelo
tempo, não podemos agora faze-lo. A propósito, o que seria “Internacional” na
“Integração Internacional” se não alguma “coisa” dada a partir dos micros
encontros do cotidiano da nossa Universidade? Nisso pensaremos oportunamente.
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