quinta-feira, 11 de julho de 2019

Agregação e Segregação espontânea e a constituição das relações sociais: pequenos comentários a partir da Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira


Quando admiti para o curso de Mestrado na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, localizada, também, no nordeste do Brasil, tive de imediato uma forte apreciação do meu professor, Obede Suarte Baloi, do Departamento de Sociologia da Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique, onde fiz a minha graduação em Sociologia. A sua apreciação foi por ele apresentada na seguinte expressão: “Mas sabes que lá é a região mais africana do Brasil? ”. Respondi que não, mas que ainda bem que era assim. “Ainda bem que era assim” porque pensei que seria uma oportunidade para olhar, com aquele “bom olhar” sociológico, uma contraparte de uma região mais africana de um país que não é, seja em termos geográficos e demográficos ou seja em termos sociais, africano. Mas ainda não consegui ver esta “região mais africana” do Brasil. Todavia, pelas histórias sobre as convivências no Ceará, ou, para ser mais concreto, esta parte do Ceará. Nesse sentido, dá para sentir, bem no fundo do meu coração, esse “africano” produzido pela história sendo que, por isso, não consegue escapar daqueles termos constituídos pela mesma história, mas que até a atualidade assombram — e com que assombração! — os espíritos contemporâneos, sejam eles brancos ou pretos, “tradicionais” ou “modernos”. Termos como “racismo”, “pessoa de cor”; “escravatura”; “colonialismo”; “subdesenvolvido”; “terceiro mundo”; “Crises, conflitos e catástrofes”, etc., são constantemente cristalizados. Termos produzidos; e produtores da história através de homens e mulheres, estes e estas produtores da história.

Entretanto, pelas rápidas observações e provisórias reflexões, senti que há uma necessidade de se ultrapassar estas assombrações. Tenho dito, assim de cabeça quente, por assim dizer, que o “racismo” é uma categoria que, enquanto categoria de e para análise, não nos ajuda em muita coisa para além da sua possibilidade de acirrar os ânimos e, em certa medida, atrofiar os espíritos. Acirra os ânimos porque a luta contra a descriminação com base, não só no sentimento da cor da pele, como também no sentimento do outro como diferente e não como singularidade é tão necessária para reconstruir a história e qualquer necessidade é, ela mesma, em certa medida, impulsionadora dos ânimos. Por isso também tem a possibilidade de atrofiar os espíritos, espíritos críticos, para ser específico. Avaliações ou análises feitas de cabeça quente podem levar a conclusões atrofiadas.  Como muito bem tem dito o sociólogo Elísio Macamo no que diz a constante utilização do “racismo” como categoria avaliativa, as vezes nem se trata de “racismo”, mas de pura imbecilidade e idiotice das pessoas em relação aos princípios que estariam na base dos constituintes das relações sociais no cotidiano. Procurar ver estes constituintes é sempre um empreendimento valioso para as interpelações das relações sociais do que a constante propagação do termo “racismo”. Racismo, no cotidiano, é uma palavra. E as palavras dão mais existência ao ato relacionados a elas quanto mais elas são ditas: não têm, mas passam a ter poder. Por exemplo, de tanto os africanos serem categorizados pela palavra “atrasados” acabamos atrasados. Isso a história nos mostra em papéis brancos com escritas a tintas pretas.

Quero trazer nesta reflexão o exemplo de um dos constituintes das relações sociais. Na verdade, pretendo aqui exercitar uma análise de uma dada situação articulando dois termos que os concebo como constituintes das relações sociais em situações de convivência multirracial, multiétnica ou multinacional como é a convivência cotidiana na Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Estes constituintes são “agregação espontânea” com a sua contraparte, nomeadamente “segregação espontânea”. Em que consistem? Consistem, respetivamente, na aproximação e distanciamento do indivíduo num determinado grupo com base no seu sentimento de pertença, sentimento este determinado por aquilo que o sociólogo canadense Erving Goffman denominou por “definição da situação”. Definir uma situação significa tomar decisões com base numa dada circunstância em que o indivíduo se encontra. Mas esta definição da situação não é exterior ao indivíduo, mas baseada em toda experiência vivenciada por este em seu cotidiano e que lhe permitiu acumular aquilo que na fenomenologia denomina-se por “estoque de conhecimento a mão”. Conhecimento este que o permite tomar decisões.

Isso nos obriga a esclarecer melhor os dois termos aqui em questão, nomeadamente “agregação espontânea” e “segregação espontânea”. Ou melhor, por que dizemos que são espontâneos enquanto os indivíduos tomam decisões com base na sua experiência vivenciada que os permite definir a situação, definição esta que os permite tomar decisões? Dizemos “espontâneo” não no sentido de “inconsciente”, mas no sentido de que tomam decisões de forma deliberativa e imediata sem necessidade de prévios questionamentos sistematizados ou problematizações sistematizadas das suas ações. Trata-se de decisões tomadas no cotidiano das pessoas, nos seus dia-a-dia, nas imediaticidades das suas vivências diárias. No nosso caso aqui, a “segregação espontânea” indica a decisão de um indivíduo de se separar, mais concretamente, de se auto separar de um grupo para se agregar a um outro grupo. Portanto, no processo de “agregação espontânea”. Considere-se estes termos, por exemplo, no contexto do “drama” momentâneo em que o indivíduo se encontra para tomar decisões sobre em que grupo se integrar diante de diferentes possibilidades: cristãos ou muçulmanos, brancos ou pretos, guineenses ou Moçambicanos, etc. A partir do momento em que decide agregar-se a um grupo, segrega-se do outro e vice-versa.

Vou trazer o exemplo muito provisório. É de uma observação que tenho feito no cotidiano na Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), no Ceará, da qual sou mestrando. De referir que são observações a partir das minhas próprias experiências diárias próprio do meu lazer cotidiano. Esta é uma observação em situações específicas: nos autocarros (ônibus) da universidade e no Restaurante Universitário (RU). A UNILAB é plurinacional, plurirracial e pluriétnica por excelência por isso um projeto lindo de se ter e, por isso, de se viver. Tanto no autocarro (ônibus) como no RU cruzam-se brancos, pretos, pardos, moçambicanos, brasileiros, cabo-verdianos, guineenses, timorenses, mulheres, homens, transexuais, homossexuais, etc. Uma das decisões a serem tomadas é onde se deve sentar e isso depende de com quem ou ao lado de quem se deve sentar. O sentimento que tenho tido, pelo me nos a nível da questão da cor (poderia haver mais variáveis como, por exemplo, “colegas do curso e de turma”), é de existência de uma tendência a agregação, antes de mais nada, a partir da cor da pele dos estudantes. O primeiro contato é de procurar saber onde se encontram as pessoas da minha cor da pele e só depois procura-se saber, por exemplo, das nacionalidades ou, se for o caso, da orientação sexual. A intimidade de duas pessoas numa mesa ou num banco do ônibus depende mais da quantidade de atributos considerados comum entre elas. Por exemplo, primeiro se vê (ou se sente) que é preto, daí o conforto de sentar ao lado, depois se procura saber a nacionalidade e, a partir daí, e se tiverem a mesma nacionalidade, mais íntimos as pessoas se tornam. Depois daí podem vir outros elementos tais como o curso, a religião, etc.

É claro que tudo que trago aqui se encontra ao nível do sentimento ou, para sermos mais sinceros, do meu pressentimento. A segregação e a agregação espontânea são apenas possibilidades. Todavia, penso que procurar isso nas relações sociais e, a partir delas, procurar perceber como elas constituem (ou estruturam?) as relações sociais é muito mais valioso do que a procura de atos que podem ser racistas ou não racistas, discriminatórios ou não discriminatórios. Não estou dizendo que tais “construções” não existam, estou apenas dizendo, e opinando, que elas não nos permitem compreender o processo de constituição de uma sociedade e nos empurra pelas pancadas nas nucas para vasculha de causas e efeitos. Assim, uma Integração Internacional que se quer a UNILAB (e que é de “louvar”), por exemplo, passa pelo desafio de se encontrar e analisar os constituintes das relações sociais que se querem integradas. A noção de “Internacional”, por exemplo, seria um outro constituinte que poderíamos pensar, mas que, pelo tempo, não podemos agora faze-lo. A propósito, o que seria “Internacional” na “Integração Internacional” se não alguma “coisa” dada a partir dos micros encontros do cotidiano da nossa Universidade? Nisso pensaremos oportunamente.

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