A infância é uma fase interessante. Parece
caber nela toda uma “vontade” de ser o que, na realidade, não se entende lá
muito bem o que é. Quer-se ser piloto. Mas as crianças, em Moçambique pelo
menos, nunca sabem como é a vida de um deles, como se liga um avião ou quais
são os primeiros passos para pilotá-lo. Quer-se ser enfermeiro. Mas parece que
as crianças querem ser simplesmente como um “titio” que, trajado de branco e
com estetoscópio ao pescoço, se aproxima delas e, nos dias de muita sorte,
pergunta “onde é que tem o dói-dói oh, pequenote?”.
As crianças querem ser o que na verdade nem têm conhecimento claro sobre o que
dizem querer ser. A infância é, de facto, uma fase interessante.
Neste texto considero esta fase como de
“matanje” de areia. “Matanje” é um termo usado na Zambézia, principalmente
pelas crianças, para designar uma brincadeira infantil onde se constrói a
imagem de um pai, de uma mãe e de um filho tendo como centro a cozinha. Diz-se
“Matanje de areia” exactamente porque as refeições, feitas sempre pelas
crianças com o papel de mãe, são feitas fundamentalmente com base na areia. Uma
coisa curiosa nesta brincadeira, e que é o que me interessa aqui, é o facto de
ela reflectir, supostamente, o adulto que é responsável pelas crianças. Assim,
“matanje de areia” deve ser entendido aqui como uma designação desta fase em que
o ser humano se encontra, porque necessita e deseja, sob responsabilidades de
alguém superior, de alguém mais velho que ele. É uma fase em que se precisa
sempre de um responsável superior: para dá-lo de comer e dá-lo banho. Para
limpá-lo o nariz e acariciá-lo quando não consegue algo. Enfim, uma fase em que
o ser humano, por ser ainda criança, necessita de um Pai, pastor ou de um
polícia.
É nesse sentido que vejo a nossa
sociedade como sendo de “matanje de areia”. De sociedade não entendam um
simples conjunto de indivíduos. Mas antes um complexo conjunto de interacções
complexas entre eles. Foi Georg Simmel, um sociólogo alemão do século XIX, quem
assim a definiu. É neste sentido que vejo a nossa sociedade composta por indivíduos
que vê no Estado um pai, pastor e polícia. O Estado aparece diante dos seus
cidadãos como um mais velho aparece para as crianças. A partir dai, é fácil
entender-se a nossa sociedade como uma sociedade fundamentalmente infantil.
Este texto propõe-se a denunciar este
nosso tipo de sociedade. Propõe-se a afirmar
que, como uma sociedade ainda infantil (e que se recusa a ser de outro modo),
não se leva muito a sério a ideia de responsabilidade individual. Vê-se o
Estado, não como empregado, mas, também, como pai que tem a função de a servir.
De cuidar dela. E cuidar dela significa dar-lhe de comer, tirar o lixo, limpar
as suas narinas, oferecer-lhe escola, indicar quem deve ser o parceiro ou
parceira enfim, um Estado que, dizem, tem como sua principal função garantir,
independentemente do que isso significa (coisa próprio de crianças!), o “bem-estar”
dos seus cidadãos. Tal como as crianças, estes não têm responsabilidades sobre
eles mesmos. Existem, acreditam, por causa do Estado e por isso este tem a
função de ser responsável por eles. Porém, diferente das crianças, eles não
conseguem ver as coisas desta maneira e se convencem de que o Estado é que
existe por causa deles. É só por isso que o tomam como “empregado”. Coisa de
crianças preguiçosas e, no limite, até malcriadas.
Necessita-se do Estado para dar-nos de
comer e dar-nos banho. Necessita-se do Estado para limpar as nossas narinas e
acariciar-nos sempre que não conseguimos algo. Necessita-se do Estado para
garantir-nos a mesada em cada final de mês. Aqui Estado aparece como pai ou
encarregado de educação. Mas necessita-se do Estado para guiar-nos para um
paraíso que chamamos “Bem-estar”. Necessita-se dele para nos organizar,
organizar a nossa casa, pintá-la e iluminá-la: há edifícios que reclamam à luz
do dia da ausência de pitura. Necessita-se do Estado para nos mostrar onde há
comida ou onde devemos descansar e relaxar. Eis o Estado apresentado como Pastor.
Mas precisamos também que ele nos controle. Necessita-se do Estado para ser
“implacável com os corruptos”, que crie leis severas para acabar com os
bandidos enfim, necessita-se de um estado polícia. E nós? O que nos compete? —
Nós? Nós somos ainda crianças! Dizem.
Não quero dizer com isso que o Estado
não seja necessário. Mas a nossa concepção sobre a sua função apenas
sobrecarrega-o e o transformamos em um simples bode expiatório das consequências da nossa própria ociosidade
intelectual e prática. As vezes até da nossa própria “animalidade” e falta de
civismo em relação a nossa conivência civil. A ideia de “Responsabilidade
individual”, tão necessária para a cidadania, desaparece completamente quando
colocamos como a função do Estado “Cuidar” dos seus cidadãos ou “garantir” o
bem-estar dos mesmos. Não é a função do Estado, por exemplo, oferecer emprego
aos cidadãos como se emprego fosse um brinquedo de madeira que se oferece a uma
criança para parar de chorar e, a partir dai, garantir algum sossego aos seus
pais. Mas, se a questão for essa, então o Estado talvez serviria simplesmente
como a entidade, competente o suficiente, para criar condições, com base em
boas políticas, para que cada cidadão crie o seu próprio emprego ou procure ele
mesmo um caminho para esta direção. Até agora, em Moçambique, só o
ex-presidente Armando Emílio Guebuza é que me pareceu querer ter levado as
coisas pelo menos nesta direção. Como seria bom se o actual prosseguisse nisso!
Por outro lado, cidadãos não faltam que
jogam o lixo “por ai” com triste convicção de que é a função do Estado (o
município, o Conselho Municipal, bom, na verdade David Simango) o responsável
por tirar o lixo. Triste, mas é um facto. Isso mostra a debilidade da noção de
“Responsabilidade individual” em nós. Isso mostra a debilidade do acto de
cidadania em nós. Cidadania, longe de ser um conjunto de direitos garantidos
pela posse de um Bilhete de Identidade (BI), é, antes de tudo, participação e
responsabilidade individual. É participação nos espaços públicos com responsabilidade.
Mas querer isso para uma sociedade como
a nossa parece insulto ou coisa de alguém que está contra ou favor do nada.
Para as crianças não há, e não deve haver, responsabilidade individual. São
crianças. Cabe aos mais velhos cuidar delas, direcioná-las, controlá-las ou
conduzi-las. Mas para os adultos já não. Eles tornaram-se responsáveis por eles
mesmos. Eles dirigem a sua própria vida. Eles, por exemplo, sabem que o pacote
das bolachas que acabaram de consumir deve ser deitado no saco de lixo da sua
casa ou no tambor de lixo mais próximo. Eles sabem da sua Responsabilidade Individual. Já não podem jogar o lixo ao chão na triste convicção de que o
Município o vai recolher como, tristemente, pude ouvir falar noutro dia. Isso
não acontece numa sociedade séria e adulta. Pena que ainda estamos longe disso.
Pena que a nossa sociedade ainda se encontra a espera de um Estado como pai,
pastor ou polícia. Pena que ela ainda se encontra a espera de alguém superior,
mais velho, que o acha ter responsabilidades sobre ela de modo a garantir-lhe as
narinas limpa. Pois acha-se que não cabe a ela levantar o seu próprio lencinho
e limpá-las. Pena que a nossa sociedade ainda é apenas uma Sociedade de
“Matanje” de areia.
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