segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

A sociedade de “Matanje” de areia

A infância é uma fase interessante. Parece caber nela toda uma “vontade” de ser o que, na realidade, não se entende lá muito bem o que é. Quer-se ser piloto. Mas as crianças, em Moçambique pelo menos, nunca sabem como é a vida de um deles, como se liga um avião ou quais são os primeiros passos para pilotá-lo. Quer-se ser enfermeiro. Mas parece que as crianças querem ser simplesmente como um “titio” que, trajado de branco e com estetoscópio ao pescoço, se aproxima delas e, nos dias de muita sorte, pergunta “onde é que tem o dói-dói oh, pequenote?”. As crianças querem ser o que na verdade nem têm conhecimento claro sobre o que dizem querer ser. A infância é, de facto, uma fase interessante.
Neste texto considero esta fase como de “matanje” de areia. “Matanje” é um termo usado na Zambézia, principalmente pelas crianças, para designar uma brincadeira infantil onde se constrói a imagem de um pai, de uma mãe e de um filho tendo como centro a cozinha. Diz-se “Matanje de areia” exactamente porque as refeições, feitas sempre pelas crianças com o papel de mãe, são feitas fundamentalmente com base na areia. Uma coisa curiosa nesta brincadeira, e que é o que me interessa aqui, é o facto de ela reflectir, supostamente, o adulto que é responsável pelas crianças. Assim, “matanje de areia” deve ser entendido aqui como uma designação desta fase em que o ser humano se encontra, porque necessita e deseja, sob responsabilidades de alguém superior, de alguém mais velho que ele. É uma fase em que se precisa sempre de um responsável superior: para dá-lo de comer e dá-lo banho. Para limpá-lo o nariz e acariciá-lo quando não consegue algo. Enfim, uma fase em que o ser humano, por ser ainda criança, necessita de um Pai, pastor ou de um polícia. 

É nesse sentido que vejo a nossa sociedade como sendo de “matanje de areia”. De sociedade não entendam um simples conjunto de indivíduos. Mas antes um complexo conjunto de interacções complexas entre eles. Foi Georg Simmel, um sociólogo alemão do século XIX, quem assim a definiu. É neste sentido que vejo a nossa sociedade composta por indivíduos que vê no Estado um pai, pastor e polícia. O Estado aparece diante dos seus cidadãos como um mais velho aparece para as crianças. A partir dai, é fácil entender-se a nossa sociedade como uma sociedade fundamentalmente infantil.

Este texto propõe-se a denunciar este nosso tipo de sociedade. Propõe-se a afirmar que, como uma sociedade ainda infantil (e que se recusa a ser de outro modo), não se leva muito a sério a ideia de responsabilidade individual. Vê-se o Estado, não como empregado, mas, também, como pai que tem a função de a servir. De cuidar dela. E cuidar dela significa dar-lhe de comer, tirar o lixo, limpar as suas narinas, oferecer-lhe escola, indicar quem deve ser o parceiro ou parceira enfim, um Estado que, dizem, tem como sua principal função garantir, independentemente do que isso significa (coisa próprio de crianças!), o “bem-estar” dos seus cidadãos. Tal como as crianças, estes não têm responsabilidades sobre eles mesmos. Existem, acreditam, por causa do Estado e por isso este tem a função de ser responsável por eles. Porém, diferente das crianças, eles não conseguem ver as coisas desta maneira e se convencem de que o Estado é que existe por causa deles. É só por isso que o tomam como “empregado”. Coisa de crianças preguiçosas e, no limite, até malcriadas.

Necessita-se do Estado para dar-nos de comer e dar-nos banho. Necessita-se do Estado para limpar as nossas narinas e acariciar-nos sempre que não conseguimos algo. Necessita-se do Estado para garantir-nos a mesada em cada final de mês. Aqui Estado aparece como pai ou encarregado de educação. Mas necessita-se do Estado para guiar-nos para um paraíso que chamamos “Bem-estar”. Necessita-se dele para nos organizar, organizar a nossa casa, pintá-la e iluminá-la: há edifícios que reclamam à luz do dia da ausência de pitura. Necessita-se do Estado para nos mostrar onde há comida ou onde devemos descansar e relaxar. Eis o Estado apresentado como Pastor. Mas precisamos também que ele nos controle. Necessita-se do Estado para ser “implacável com os corruptos”, que crie leis severas para acabar com os bandidos enfim, necessita-se de um estado polícia. E nós? O que nos compete? — Nós? Nós somos ainda crianças! Dizem.

Não quero dizer com isso que o Estado não seja necessário. Mas a nossa concepção sobre a sua função apenas sobrecarrega-o e o transformamos em um simples bode expiatório das consequências da nossa própria ociosidade intelectual e prática. As vezes até da nossa própria “animalidade” e falta de civismo em relação a nossa conivência civil. A ideia de “Responsabilidade individual”, tão necessária para a cidadania, desaparece completamente quando colocamos como a função do Estado “Cuidar” dos seus cidadãos ou “garantir” o bem-estar dos mesmos. Não é a função do Estado, por exemplo, oferecer emprego aos cidadãos como se emprego fosse um brinquedo de madeira que se oferece a uma criança para parar de chorar e, a partir dai, garantir algum sossego aos seus pais. Mas, se a questão for essa, então o Estado talvez serviria simplesmente como a entidade, competente o suficiente, para criar condições, com base em boas políticas, para que cada cidadão crie o seu próprio emprego ou procure ele mesmo um caminho para esta direção. Até agora, em Moçambique, só o ex-presidente Armando Emílio Guebuza é que me pareceu querer ter levado as coisas pelo menos nesta direção. Como seria bom se o actual prosseguisse nisso!

Por outro lado, cidadãos não faltam que jogam o lixo “por ai” com triste convicção de que é a função do Estado (o município, o Conselho Municipal, bom, na verdade David Simango) o responsável por tirar o lixo. Triste, mas é um facto. Isso mostra a debilidade da noção de “Responsabilidade individual” em nós. Isso mostra a debilidade do acto de cidadania em nós. Cidadania, longe de ser um conjunto de direitos garantidos pela posse de um Bilhete de Identidade (BI), é, antes de tudo, participação e responsabilidade individual. É participação nos espaços públicos com responsabilidade.


Mas querer isso para uma sociedade como a nossa parece insulto ou coisa de alguém que está contra ou favor do nada. Para as crianças não há, e não deve haver, responsabilidade individual. São crianças. Cabe aos mais velhos cuidar delas, direcioná-las, controlá-las ou conduzi-las. Mas para os adultos já não. Eles tornaram-se responsáveis por eles mesmos. Eles dirigem a sua própria vida. Eles, por exemplo, sabem que o pacote das bolachas que acabaram de consumir deve ser deitado no saco de lixo da sua casa ou no tambor de lixo mais próximo. Eles sabem da sua Responsabilidade Individual. Já não podem jogar o lixo ao chão na triste convicção de que o Município o vai recolher como, tristemente, pude ouvir falar noutro dia. Isso não acontece numa sociedade séria e adulta. Pena que ainda estamos longe disso. Pena que a nossa sociedade ainda se encontra a espera de um Estado como pai, pastor ou polícia. Pena que ela ainda se encontra a espera de alguém superior, mais velho, que o acha ter responsabilidades sobre ela de modo a garantir-lhe as narinas limpa. Pois acha-se que não cabe a ela levantar o seu próprio lencinho e limpá-las. Pena que a nossa sociedade ainda é apenas uma Sociedade de “Matanje” de areia.

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